Literatura e Sociedade N.13 (2010)

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Literatura e Sociedade N.13 (2010)        

 

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EDITORIAL

 

O realismo como forma

Num texto de 1938, Bertolt Brecht escreve sobre a amplitude e a variedade do modo de escrever realista, definindo sua única baliza possível, “o estilo realista só pode ser distinguido do não realista na medida em que é confrontado com a própria realidade da qual trata”. O autor se dirigia mais imediatamente aos leitores da revista Das Wort [A Palavra], editada em Moscou de 1936 a 1939, onde se deu parte do famoso debate sobre o realismo (também conhecido como Debate sobre o Expressionismo) naqueles anos 1930, envolvendo críticos, filósofos e escritores de esquerda, em especial o grupo dos exilados alemães. Brecht se colocava numa posição diametralmente oposta àquela defendida por Georg Lukács, cuja concepção de realismo lhe parecia demasiado “formalista”, uma vez que delimitava (prescrevia?) quais seriam os procedimentos técnicos adequados e quais seriam as representações do processo histórico-social capazes de desvelar a realidade, via de regra os praticados pelos romances realistas burgueses do século XIX. Privilegiando os momentos em que a força de grandes escritores encontrara a possibilidade histórica de representação da totalidade social (como em Balzac), Lukács entretanto não reconhecia o teor de verdade da literatura que passava, após o trauma de 1848, a dar um corpo fragmentário à mimese, apostando por exemplo na negatividade do ponto de vista parcial ou mesmo cego (vide Flaubert e Kafka), na deformação da subjetividade ou da perspectiva individual como marca profunda da história (vide o expressionismo), ou no aspecto documental ao rés do chão naturalista (vide Zola). O crítico húngaro acabara de escrever um texto contra o expressionismo alemão, tomado como metonímia das diversas vanguardas e modernismos em curso. B.B. responde com uma precisão até hoje desconcertante em alguns meios acadêmicos: se O realismo como forma Prefaciais.indd 5 7/11/2010 14:25:03 ao realismo correspondem sobretudo, quando não apenas, os romances escritos no “século passado” (o XIX), então o problema não está nem no realismo, nem nas obras que não cabem em tal conceito, mas na estreiteza de ângulo dos que assim o concebem. Em questões de forma literária, melhor consultar a realidade, não a estética; certamente não para “espelhar” a realidade (isso seria uma questão de cosmética) mas para compreender as perguntas que a arte dirige a nós e a ela, realidade. O modo de escrever realista, diz ainda Brecht, não renuncia à fantasia para encontrar o real, não renuncia à liberdade, se é justamente em sua busca que se coloca. Por isso não há este ou aquele modo “correto” de representar a realidade, é preciso descobrir a cada momento novas maneiras, e o alcance da mimese dependerá sempre do resultado formal de cada obra, de como cada uma consegue, e em que medida, configurar as contradições do real, dizêlas ou silenciá-las. Afinal, poderíamos perguntar com o grande dramaturgo do século XX: o que haverá de mais amplo na arte do que sua potencialidade de nos fazer conhecer, em diferentes momentos, a nossa própria vida social e a nossa própria subjetividade? Este número 13, assim como o próximo, 14, da revista Literatura e Sociedade organiza-se em torno à discussão sobre o conceito de realismo e à análise e crítica de obras realistas, e procura ter em mente definições tais como as de Brecht sobre o realismo, ideias vivas, daquelas que ainda hoje nos ajudam a pensar. A Comissão Organizadora do número visou, com isso, como já ficou claro, não apenas o enfoque da dita escola realista na literatura e nas outras artes, mas o modo como os materiais de que se compõem o texto literário, a pintura, o teatro, o cinema – a saber, em sentido amplo, a história, a sociedade, incluindo-se seus processos econômicos e sua cultura – sedimentam-se na forma que os expressa, tornando-os passíveis de ser estudados a partir de uma crítica imanente do texto. A proposta para os textos analíticos e também para os textos teóricos foi a de pensar como a obra de arte organiza e interpreta seus materiais artísticos e extraartísticos, ou por outra, de que maneira ela é um campo de forças e de conhecimento da realidade, uma configuração mediada de elementos externos, tornados internos. Numa palavra, a revista se interessou pela teoria e pela análise das formas que buscaram e buscam representar a realidade social em andamento. Vale dizer mais uma vez, quando se pensa em realismo no sentido aqui proposto, trata-se de verificar modos de apreensão da realidade, e de técnicas e procedimentos constantemente retomados e reinventados nesse propósito (ainda que as próprias convicções do escritor, seu ânimo ideológico inclusive, possam ser revertidos ou reperspectivados pela forma objetiva da obra de arte). Assim, nos dois volumes da revista sobre esse tema da teoria literária, ensaios analítico-interpretativos focam-se em obras específicas, sem deixar de re- Prefaciais.indd 6 7/11/2010 14:25:03 pensar o sentido da “verdade [ou da mentira] social” nelas presente. Estendendo a concepção de realismo no espaço e no tempo, a Comissão Organizadora não delimitou nenhum período ou tradição específica (vejam-se, por exemplo, a tradução/recriação de trechos da Bíblia pelo poeta Waldo Motta e, noutra ponta do compasso, a interpretação de obras contemporâneas brasileiras, as pequenas peças de ficção sobre “Pingüins” no n.14 ou uma das peças finais de Samuel Beckett). Entram tanto Verga, Zola, Dickens, Machado, Henry James, Graciliano, Lima Barreto, Brecht – autores mais reconhecidos nesse terreno –, como Cornélio Penna, Virgínia Woolf, o documentário brasileiro contemporâneo, um romance clássico de Maria José Dupré, a ficção do nosso maior tradutor de Kafka, a de um insuspeito Filantropo, a produção de Antônio Dias no campo das artes plásticas... O leitor deste n.13 notará certa ênfase em artigos sobre Machado de Assis. À parte as casualidades que compõem toda revista, a insistência num mesmo autor brasileiro não nos parece casual. No Brasil, Machado foi, e ainda é, o escritor que define pela primeira vez, com a força que lhe é própria, uma compreensão ampla do que seja o realismo, tanto em sua ficção e como em textos célebres sobre o assunto (“Instinto de nacionalidade”, 1873). Seu realismo fortemente arquitetado com recursos não realistas, ou não tradicionalmente realistas – capaz de mostrar, sob o invólucro cosmopolita, o atraso brasileiro em dia com a modernidade burguesa –, é uma das linhas de força da palestra de Roberto Schwarz, cujo texto, inédito em português, consta da seção Rodapé. O crítico situa Machado num campo estético e social internacional (o único em que o realismo pode fazer sentido, já que supõe um conjunto de forças históricas atuantes), para definir sua capacidade de apreender o novo e de construir uma perspectiva que permitiu e permite pensar o presente. A seção Ensaios abre-se com um artigo inédito de Dolf Oehler, nosso entrevistado do número, sobre um Baudelaire nos antípodas da arte burguesa. Entre outras coisas, o ensaísta desbasta o terreno das anedotas sobre a “controversa participação política” do poeta, mostrando que o autor de Flores do mal participou das insurreições em fevereiro e junho de 1848, ao contrário de escritores e jovens burgueses que, após fevereiro, deixaram os proletários à sua própria sorte. É de resto nesse sentido que, na leitura feita por Oehler, um poema como “Caim e Abel” repele o culto à fraternidade (uma fraternidade historicamente desvelada como fumaça do volúvel ânimo da burguesia), a qual tinha se transformado em culto anacrônico, num intervalo de poucos meses. Na sequência do ensaio de Oehler, Edu Teruki Otsuka apresenta ao leitor um Lukács pouco lembrado pela crítica, o leitor de Hoffmann, cuja emersão poderia revirar mais uma vez o debate sobre suas posições relativas ao realismo em lite- Prefaciais.indd 7 7/11/2010 14:25:03 ratura. Em seguida, Pedro Fragelli analisa a especificidade do diário íntimo machadiano, o Memorial de Aires, mostrando como as práticas sociais do Segundo Reinado são ali perspectivadas. Ana Paula Pacheco, numa análise de São Bernardo, investiga as continuidades e o sentido da herança machadiana em Graciliano Ramos. Ainda seguindo o fio machadiano, Marcelo Pen Parreira analisa os procedimentos realistas de Henry James numa cena do romance Os embaixadores, confrontando-os com as estratégias narrativas do Memorial de Aires, vendo em ambos o surgimento de um viés mais refletido de consciência estética. De outra perspectiva, Antônio Sanseverino também centra o olhar no sentido dos procedimentos machadianos, investigando as relações entre a forma moderna do conto (em “O espelho”) e sua matéria, a escravidão brasileira. Ainda sobre nossa tradição realista brasileira, no caso em pleno momento de experimentação da incongruência entre formas europeias herdadas e assuntos “nossos”, Fernando Cerisara Gil estuda o romance O sertanejo, de Alencar, tirando consequências do caráter pendular da representação de seu protagonista, entre herói e dependente. Em seguida, num enfoque mais voltado à história literária, Homero Freitas de Andrade parte das vanguardas literárias russas do início do século XX, como parâmetro para fazer uma recensão crítica do realismo socialista, que vigorou na URSS a partir de 1932. Após tal exame dos limites do conceito e da prática “realista” sob o stalinismo, os dois últimos textos dessa seção voltam a tratar de obras realistas num quadro estético menos restrito ou, para dizer com ânimo brechtiano, mais amplo. André Goldfeder interpreta O filantropo, livro de ficção do crítico de arte Rodrigo Naves, a partir de ensaios desse autor sobre Pollock, Amilcar de Castro e Mira Schendel, uma ponte que lhe permite ver a articulação entre questões das artes plásticas e desafios à experimentação literária na contemporaneidade. Por fim, Luiz Renato Martins discute a formação do sistema visual brasileiro, configurado em torno da abstração geométrica dos anos 1950 e consolidado na superação dialética dessa vertente pelas proposições críticas e experimentais que a sucedem, em especial as obras de Hélio Oiticica e de Antonio Dias. A seção Rodapé traz textos e falas sobre a noção de realismo, e seus pressupostos, em sentido forte. Abre-se com uma palestra de Iná Camargo Costa sobre a conjuntura histórica em que se define o sentido da obra de Bertolt Brecht, como uma estética que deriva da luta política. Em seguida, temos o texto já comentado de Roberto Schwarz a partir de uma exposição feita no colóquio sobre o romance realista, “The persistence of realism”, organizado por Franco Moretti na Universidade de Stanford em 2003. E fechando a seção, um posfácio de Fredric Jameson, inédito em português, ao livro Asthetics and politics, em que o crítico faz uma retrospectiva da polêmica sobre o realismo iniciada nos anos Prefaciais.indd 8 7/11/2010 14:25:03 1930, tendo em vista suas ressonâncias na reflexão sobre a nossa contemporaneidade, estética e política. O número conta ainda com um dos poemas que figuram no livro inédito de Waldo Motta, Terra sem mal, e com a mencionada transcriação bíblica feita pelo poe ta – nas palavras dele, uma versão em chave escatológica de trechos do Gênesis. Por fim, um poema de B. Brecht sobre a poesia em tempos difícies.

COMISSÃO EDITORIAL


 

SUMÁRIO


ENTREVISTA

16 • 1848: realismo, satã, política, alegoria

DOLF OEHLER


ENSAIOS
26 • “Loucura do povo e loucura da burguesia”.
Baudelaire: ator, poeta e juiz da revolução de 1848
DOLF OEHLER
36 • Lukács, realismo, experiência periférica
(anotações de leitura)
EDU TERUKI OTSUKA
46 • As formas e os dias
PEDRO FRAGELLI
66 • A subjetividade do Lobisomen (São Bernardo)
ANA PAULA PACHECO
84 • Entre o quadro e o sepulcro:
Strether, Aires e o cerco ao real
MARCELO PEN PARREIRA
104 • “O espelho”: metafísica da escravidão moderna
ANTÔNIO MARCOS VIEIRA SANSEVERINO
132 • O caráter pendular do herói brasileiro
FERNANDO C. GIL
152 • O realismo socialista e suas (in)definições
HOMERO FREITAS DE ANDRADE
166 • Entre mim e o que vejo: uma leitura de O filantropo
ANDRÉ GOLDFEDER
186 • O esquema genealógico e o mal-estar na história
LUIZ RENATO MARTINS


RODAPÉ
214 • Brecht e o teatro épico
INÁ CAMARGO COSTA
234 • Um avanço literário
ROBERTO SCHWARZ
248 • Reflexões para concluir
FREDRIC JAMESON
POEMAS
בראשית • 264 – BeREShYTh – Recreação
(Transdição poética, em chave escatológica,
da cosmogonia narrada em Gênesis 1: 1–31 e
2: 1–3, a partir do original hebraico)
WALDO MOTTA
272 • Jurupari
WALDO MOTTA
278 • Tempos ruins para a poesia
BERTOLT BRECHT


279 • BIBLIOTECA
Publicações do Departamento


285 • APÊNDICE
Artigos publicados
Aos colaboradores
Onde encontrar a revista

 

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Adélia Bezerra de Meneses
Antonio Candido
Aurora Fornoni Bernardini
Beatriz Sarlo
Benedito Nunes
Boris Schnaiderman
Davi Arrigucci Jr.
Fredric Jameson
Ismail Xavier
Jacques Leenhardt
John Gledson
Ligia Chiappini Moraes Leite
Marlyse Meyer
Roberto Schwarz
Teresa de Jesus Pires Vara
Walnice Nogueira Galvão

PARECERISTAS DESTE NÚMERO                                                                                                                                                                           

André Bueno
Homero Vizeu Araújo
Luis Alberto Brandão
Vinícius Figueiredo


COMISSÃO EDITORIAL

Ana Paula Pacheco
Betina Bischof
Marcelo Pen Parreira